terça-feira, junho 12, 2012

Peregrinação a Santiago de Compostela


1º Dia

Saímos por volta das 6h50, de Canidelo, Vila Nova de Gaia, e fomos parando a cada hora/hora e meia. Durante o descanso fomos descalçando tudo para refrescar e arejar, reduzindo a humidade nos pés, meias e calçado. Por volta das 12h00 paramos em Vilar para um almoço rápido e leve, então optamos por um almoço num pão-quente, com um snack bem ligeiro. A tarde, praticamente começou com a chuva que, não só nos acompanhou mas também, nos torturou até ao albergue de S. Pedro de Rates. Agora sabemos também que foi má opção não ter privilegiado o uso de vaselina, ou um outro creme especial de prevenção ao aparecimento de bolhas nos pés. Ambos ganhamos uma bolha, devido maioritariamente ao calçado ensopado. A minha, a rapariga do albergue teve a amabilidade de a furar. As dores nas pernas e costas são intensas, qualquer movimento é penoso. Jantamos no Macedo, no centro da vila, e acabamos por ter a companhia de duas alemãs. O acolhimento foi bom, ainda nos ofereceram umas bebidas, que claro, ajudou a esquecer as mazelas.

2º Dia

A noite foi horrível e tal como a opção da vaselina, não usar tampões nos ouvidos provou ser uma decisão falhada. Havia peregrinos, que tal como eu, admito, ressonam toda a noite, o pior é que ressonam de forma mais audível que eu. Havia alguns que lembravam betoneiras a misturar cimento e até os carros na estrada pareciam propositadamente mais audíveis ao passar junto ao albergue. Dormimos pouco, que ao juntar às dores que ainda persistiam do dia anterior, certo levaria a um dia difícil. Ainda de manhã, ficou a visita ao famoso restaurante Pedra Furada, não há peregrino que não o conheça. Servi-me de uma excelente sande de Rojões e um copo de vinho verde fresquinho, nada de anormal, caso não fossem ainda umas 10h00 da manhã, mas como os dias peregrinos começam bem cedo... Também apetitoso, e igualmente agradável, o seu bolo e sumo de laranja caseiros.Paramos para almoço em Barcelos, a refeição foi sopa, um ovo cozido e água. Está a ser difícil, e estamos cada vez mais cansados, com dores e bolhas, mas Tamel ainda dista 10 km de Barcelos. Ao aproximar de Tamel, S. Pedro de Fins, a visão de uma placa anunciando o albergue a 2,8 km, é quase uma bênção, pena serem 2,8 km maioritariamente a subir, com algumas picadas bem puxadas. O espaço é recente e muito bem equipado, quase ficamos com aquele aprazível gosto das coisas simples uma vez mais, tal como aquela refrescante fonte à saída de Vila Boa, onde podemos refrescar as pernas e pés. O serão foi agradável, as mazelas começam a desaparecer, ou nós a aceita-las de forma mais consciente. Existem inúmeros alemães a realizar o caminho, o que é curioso pois não é um povo muito religioso, e talvez o façam pelo desporto, aventura e desafio.

3º Dia

A manhã começou pelas 6h30, embora só tenhamos deixado o albergue por volta das 8h00. Começamos com muito bom ritmo, julgando pela distancia de 10 km percorridos apenas nas primeiras duas horas. Percebo que as pausas, além de serem essenciais, têm o revés de causar falta de vontade em progredir. Neste dia, tudo parecia finalmente encaminhar-se num bom sentido, mas pouco depois das 12h00 depara-mo-nos com uma calçada bem exigente, dura e quase intransitável com tantas limitações físicas. Eram já cerca das 14h00, a uns 5 km de Ponte de Lima, decidimos parar para almoçar na Seara, onde nos serviram uma bem apresentável e igualmente saborosa salada de atum. aí apareceu Christine, a alemã com quem tínhamos partilhado uma garrafa de Gazela na noite anterior. A tirada final da caminhada diária foi em trio, e foi bem agradável. Chegamos ao albergue às 16h30, o qual só abriria portas 30 minutos depois. E ainda bem que não "corremos" depois do almoço, ou até mesmo para entrar. Se por um lado só abre às 17h00, por outro entre a cama 17 e 40, o quarto é o melhor deles todos. A minha companheira, cedeu finalmente, e concordou em furar as bolhas, e eu, quanto às minhas, doí-me a que foi furada (estranhamente). O jantar foi, no espírito peregrino, fantástico, num convívio verdadeiramente internacional. À mesa estava a Alemanha, o Brasil, o Japão, a Espanha, a Itália e claro, Portugal. Inicialmente eram 10 mais logo chegaram mais 4 ciclistas vindos do Porto, que se juntaram a nós. Penso ter bebido demais...

4º Dia

A noite foi mal dormida, devido à fruta bebida, ao colchão e uma indisposição intestinal. Acordei por volta das 3h30 e fui até ao salão de convívio e encontrei o Marcelo, um brasileiro que já se encontrava pronto para seguir viagem. Fui de novo para a cama por volta das 5h00, mas fiquei a olhar para o tecto. Passado pouco tempo acordei-a e começamos por volta das 6h45. Não sei como classificar as subidas da serra da Labruja, dizer que foi puxado e duro, era ser simpático para os alpinistas, mas na verdade, com uma mochila às costas, com cerca de mais 10% do nosso peso corporal, num piso bastante irregular, não tenho outras palavras para descrever que não essas. Cerca de 4 km de extensão, a subir (leia-se "escalar"), é um desafio. A meio apanhamos o Marcelo, no seu ritmo descontraído, mas que logo nos acompanhou até Rubiães. Chegamos ao albergue por volta das 12h15, e como ainda estava fechado, fomos ao Bom retiro almoçar. Foi muito engraçado pois vinha a dizer que me apetecia frango assado e chego ao restaurante...prato do dia. Digamos que o Marcelo, devido ao seu trabalho, conseguiu mudar o meu cepticismo em relação a certas questões da vida em geral, numa experiência à qual lhe irei ficar eternamente grato. Essa experiência, a juntar ao almoçar aquilo que vinha a desejar, faz-me mesmo pensar que nada acontece por acaso, e toda esta peregrinação está a provar ser bastante desafiante. Voltamos para o albergue para descansar pois planeamos uma etapa longa para o dia seguinte. Ao jantar, ainda comemoramos o aniversário do Abel, com a refeição a ser bacalhau e trutas pescadas por eles mesmo cedo na manhã.

5º Dia

Hoje tentamos fazer Rubiães - Mós... O dia começou cedo, mas com o timming perfeito para sair do albergue, percorrer alguma distância e entrar no café/loja do Sr António logo às 7h00. Ao chegar a Valença, apanhamos uma vez mais o Marcelo, e como é óbvio, acompanhou-nos durante o resto da etapa. Esta seria longa, mais longa do que esperávamos, não pela distância, pois essa estava bem presente no nosso consciente, mas pela penosa, árdua, maléfica e abstracta zona industrial do Porriño. decidimos fazer esta longa tirada pois a previsão para o dia seguinte, para essa etapa, era de chuva forte, assim tentamos estar um passo à frente da chuva. Mas penso que o pior dessa parte da etapa, até nem seria a chuva, pois com cerca de 3 km sem abrigo ou sombra, debaixo de sol intenso deveria ser bem mais difícil. O albergue fica a uns 200 metros fora do Caminho, mas é recente e com muitas lojas e supermercados próximos, com muita opção de escolha, mas o albergue propriamente dito, tem pratos e tachos apenas para amostra, mas ainda assim consegue-se fazer uma massinha. Enquanto fazia o jantar, um alemão contou-me que uma alemã foi atacada na mata entre a Virgem do Caminho e a aldeia da Madalena. Apesar de não ter sido violada ou assaltada, será uma zona a qualquer peregrino evitar caminhar sozinho. (No dia seguinte fiquei a saber que não foi caso isolado, na mesma zona, pelo que, mesmo que esteja sozinho/a, aconselho a fazer essa parte do caminho na companhia de alguém).

6º dia

Acordamos por volta das 7h20 e o Marcelo veio trazer uns óleos para eu massajar na irritação de pele e tornozelos inchados da minha companheira. Enquanto eu aplicava reparei que já tinha evoluído para infecção pois já estava a desenvolver bolhas de pus. Foi entre Tamel e Ponte de Lima que lhe começou a aparecer essa irritação, mas que hoje tinham verdadeiramente alastrado desde os tornozelos até perto dos joelhos. Fomos às urgências locais, mas como não tínhamos o cartão europeu de saúde teríamos de pagar uma taxa de 200€. Após pensar sobre o assunto e conversar com ela, ficou definido que ela regressaria a casa para se tratar e eu continuaria. Eu sei que foi algo que a deixou realmente em baixo, mas necessitávamos de ser racionais, e caso ela insistisse em continuar, eu abandonaria, não queria tomar parte da sua loucura. Ela não estava bem, e eu não queria sentir-me responsável por algo mais grave caso decidisse continuar. O comboio só partia depois das 20h00, pelo que foi de autocarro até Tui, e depois tentaria apanhar outro autocarro pois a CP estava de greve. Comecei a caminhada eram já quase 10h00, e pouco depois a saudade já apertava...
Parei em Mós para tomar café e o rapaz ainda me ofereceu uma fatia de bolo de laranja e um cálice de sumo de laranja. Tinha parado de chover há pouco pelo que vim sentar-me nas escadas junto à igreja. Imediatamente, depois de até ali ter imensas perguntas na minha cabeça, algo aconteceu. No exacto local onde estava, junto da igreja, pareceu que as nuvens abriram para mim, o sol ajudou-me a aquecer e secar pelo que pouco depois voltei ao Caminho. Cheguei ao albergue perto das 14h00 e instalei-me junto ao Marcelo. Como era cedo, ainda fomos dar uma volta pela localidade, mas como era Corpo de Cristo, quase todo o comercio estava fechado, pelo que o jantar foi apenas pizza. Ainda não sei o que fazer, até onde irei, mas se fosse como hoje, onde a musica me ajudou bastante a percorrer muitos quilómetros em pouco tempo, decerto pensarei em algo diferente.

7º Dia

Saímos de Redondela pouco antes das 6h00 e inicialmente éramos 3, eu, o Marcelo e o Osório, mas depressa apenas ficamos os "suspeitos do costume". As dores começaram cedo, ainda o dia estava a clarear, mas lá fui aguentando com alguns alongamentos e paragens mais curtas. Eram 11h30 quando chegamos a Pontevedra, mas perdemos mais tempo que o usual para almoço. E nesse aspecto o Marcelo foi uma excelente companhia para estes dias, não só caminhava rápido e por distâncias grandes, como também ajudava-me a prosseguir e chegar mais depressa a Santiago para aí poder matar as saudades que tinha desde o Porriño. Logo continuamos, pretendíamos chegar o mais cedo possível a Briallos, para assim, descansar por um maior período de tempo. Quando chegamos, estava um peregrino deitado no chão e dizia que estava fechado, na verdade não estava, mas como não sabia, perguntei a um senhor que me indicou a casa da responsável. Mas pelos vistos também não seria, mas tanto faz pois encontrei a Marcy que me disse que o albergue já estava aberto e é a protecção civil que vai lá carimbar as credenciais. Tudo que se tem de fazer, em caso de estar fechado, é ligar para o numero afixado no exterior, e eles indicam onde está a chave. Fui fazer as compras para cozinhar o jantar, e depois de já estarmos sentados à mesa, o responsável da protecção civil estava com dificuldades em entender o que Ute estava atentar explicar. Uma senhora que viajava sem dinheiro, mas que não se importava de retribuir com limpezas se lhe concedessem estadia. Eu achei comovente, uma senhora daquela idade, com aquele espírito de aventura, assim eu mesmo lhe paguei estadia e ainda lhe ofereci o jantar. São, por certo, todas estas diferenças, estórias e histórias, convívios e vivências, que fazem o caminho um desafio único, não só físico mas também mental,espiritual e social.

8º Dia

Este foi "O" meu dia.
Tive uma noite incrivelmente difícil, quase vomitei e acordei com enorme ressaca. Tinha combinado com o Marcelo irmos até Teo, e assim acordou-me eram 7h00. Mas não me sentia nem tão pouco capaz de me levantar da cama, quanto mais caminhar uns 36 km. Pedi-lhe desculpa mas teria de seguir sem mim. Saí por volta das 8h00, pouco faltava, e cheguei a Caldas eram quase 9h00. Depois de lavar os pés na fonte de água quente, fui tomar pequeno almoço. Só deixei a localidade por volta das 9h50, depois de beber uma  abençoada água com gás. Deu resultado,e uma vez que estava a caminhar verdadeiramente sozinho, foi o dia perfeito para caminhar ao som única e exclusivamente de musica. eram umas 13h45 quando entrei na tasca do Pepe, no Padrón, um personagem divertidissimo que faz questão de tirar sempre uma foto a todos e não os deixar sair sem um forte abraço, daqueles mesmo amigáveis, que de tão bom foi para mim, decerto regressarei lá. Estava ensopado pois desde pouco antes das 11h00 que chovia, e bem, durante o meu Caminho. Assim sendo decidi continuar com o plano estabelecido e rumar até Teo. Afinal de contas, depois daquele almoço e convívio com Pepe e sua esposa, e tal como ela diz, " Solo com pan e chourizo, se hace bon Camino". Eram 16h30 quando cheguei a Teo e foi muito interessante, finalmente conheci Marianne, a alemã que havia caminhado com o Marcelo dia e meio, mesmo se não se entendessem verbalmente. Onde quer que parássemos, todos diziam "finalmente conheço o Marcelo", tudo porque ele foi uma parte importante na libertação espiritual de Marianne, e como andou sempre uma etapa à nossa frente, ela contava a sua experiência com Marcelo a quem foi conhecendo. Curiosamente, ele só lá chegou por volta das 19h10.

9º Dia

Acordei e já quase todos estavam a pé, prontos para sair às 6h00. Ainda reflectia acerca de ir a Fisterra e Muxia ou não, mas no fim de contas, não ter o calçado correcto tendeu contra. Ainda assim, saí cerca de 45 minutos depois e a meio dos 12 km finais, já encontrava os primeiros do grupo, Marianne e Marcelo só apanhei a faltar uns 3,5 km. Logo ao chegar, fomos tomar um bom café e eram umas 10h15 e estávamos junto à catedral. Fomos buscar a Compostela que não é atribuída dentro da catedral, e fomos tomar, verdadeiramente, o pequeno almoço, a banana e as amêndoas à muito que já tinham deixado o meu corpo através do esforço. E por falar em esforço, ao chegar, a emoção de dever/objectivo cumprido é meia dose de anestesia para todas as dores. Foi especial e bem carinhoso voltar a ver a minha companheira e os meus pais. Fomos assistir à missa, e ainda assistimos ao Botafumeiro, apenas libertado nas missas das 12h00 aos domingos e quartas-feira. Durante a missa e no exterior, encontrei algumas caras, peregrinos que tinham convivido estes últimos dois dias comigo. Muito bom. Fomos almoçar ao restaurante "Botafumeiro", onde servem refeições muitos agradáveis, em conta e com produtos frescos. Depois disso, seguiu-se os "recordos" e a viagem a casa. A repetir...